quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Recordando... a escuridão da hora H

...E era, também, debaixo do avental, que escondia a carta que trouxera da loja, ansiosa por ouvir ler as notícias dos familiares que deixara na sua terra distante, há muitos anos atrás. Então, repetia-se o mesmo ritual, de sempre. Minha mãe lia-lhe a missiva, em voz alta, uma, duas e três vezes, até que ela assimilasse tudo o que lá vinha, recordasse as vivências de outrora ou questionasse a razão dalgum pormenor, menos explicado. Depois, outra vez, tirava debaixo do avental ou de dentro do seu bolso, a folha de papel pardo dobrado e, de lá, surgia a carta para a resposta, acabadinha de comprar e a precisar de ser escrita e enviada "na volta do correio".
Com o argumento de que o exercício me ajudava na aprendizagem, minha Mãe ordenava que fosse eu a escrever o que a nossa vizinha ditasse, enquanto ela, "sem largar os pontos", sempre costurando, me orientava, sem fazer caso do enfado que eu evidenciava e que hoje, me enternece tanto.
Primeiro, era o desejar da saúde para todos e o registo das graças a Deus por "todos por cá", estarem bem. Depois, era o registar das muitas saudades sentidas, citando o nome deste e daquele, desta e daquela, num rol sem fim. Era o explicar as dificuldades da vida diária deste ou daquele familiar e...sempre a realçar as saudades, os votos de saúde, as razões porque não visitava toda a gente de que se lembrava, todos os dias.
Por vezes, eu dizia: - Já escrevi isso. Já escrevi que tem saudades. E ela respondia: - Escreve outra  vez. Eu quero que eles saibam que não posso lá ir porque é longe e ninguém me pode levar.
A mim, parecia-me estar a escrever para o fim do mundo. Falava-se de gentes que nunca vira e que ninguém tinha esperança de voltar a abraçar.
Sentia-a tão pobre! Não tinha mais que a carga de ervas e lenha que lhe via carregar nas costas, no final de cada tarde de trabalho, no campo. Não sabia ler, nem escrever. Só lhe sobravam  na alma as saudades das raízes.
Graças ao  rasgar dos horizontes,  afinal, sei hoje que a sua terra fica já ali. A dois passos da recordação dos tempos idos. Mas... a escuridão teima, de novo, em ofuscar esse caminho.

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